O que ser mãe de duas meninas me ensinou sobre o patriarcado?
Fiquei um tempo pensando antes de começar a escrever este texto e tive muita dificuldade para iniciar. Pois entendi que não foi ser mãe de meninas que me ensinou sobre o poder do patriarcado sobre nós mulheres, mas simplesmente o fato de ter nascido mulher.
Óbvio que a maternidade vem e esfrega na sua cara todo o machismo e sexismo desenfreado e naturalizado. Entretanto, eu já sentia as mazelas do sistema patriarcal mesmo em sensações incômodas, ainda inconscientes em mim, na adolescência.
Lembro quando meu corpo começou a se desenvolver e eu era invadida por olhares masculinos abusivos, muitas vezes seguidos dos famosos e irritantes “fiu fiu”. Em casa, meu irmão podia sair e voltar a hora que quisesse, namorar, pegar o carro dos nossos pais antes mesmo de ter habilitação. Ele era considerado o mais inteligente e podia viver como bem entendesse, diferente de mim.
Ser mãe de meninas aumentou meu medo do patriarcado
Ser mãe de menina me trouxe medo, a partir do momento que a narrativa não era mais somente sobre mim, meu corpo, minhas vontades. Era também sobre duas vidas femininas recém-chegadas ao mundo e que eu teria que guiar numa sociedade violenta, tóxica e patriarcal.
Apesar de o assunto aqui ser maternidade de meninas, nunca é demais lembrar que meninos estão o tempo todo sendo colocados à prova sobre o que é “ser homem.” Intoxicados por uma masculinidade frágil e doente. São ensinados a não expressar suas sensações, seus sentimentos, suas emoções. No lugar disso, é preciso ser viril, forte e, claro, “pegador”.
Tampouco são instruídos a cuidar da casa, a fazer as tarefas domésticas que deveriam ser divididas igualmente desde a infância. Ou, quem sabe, ensinados a se tornarem pais, caso escolham isso na vida adulta. Isso porque não são ensinados a chorar, abraçar, fazer carinho nos amigos e brincar com os chamados “brinquedos de meninas”. E é nesse assunto que quero entrar agora.
Calma galera do “nem todo homem”. Sabemos que a situação está mudando e que temos um longo caminho pela frente. Salve pra ler depois o texto do embaixador Beto Bigatti:
Brinquedos: a primeira influência social que meninos e meninas recebem
Começando pela infância, a partir do momento em que nascemos, começamos a receber essa influência social que condicionará nossa maneira de ver e de estar no mundo.
Os brinquedos que estão nas prateleiras das lojas e que são disponibilizados pelos adultos para as crianças são carregados de valores e preconceitos da cultura patriarcal.
Brinquedos de meninas e de meninos
De uma maneira geral, para as meninas, os brinquedos são as famosas casinhas, jogos de panela, vassourinhas, eletrodomésticos plásticos, carrinhos de bebê, bonecas, panelinhas, fogãozinho, entre outros. Além disso, todos eles na cor rosa, é claro, e que são associados a características como delicadeza, romantismo, fragilidade, maternidade, trabalho doméstico e os cuidados com filhos e marido.
Quando falamos dos meninos, os brinquedos são carrinhos, bonecos de heróis, foguetes, espadas, jogos de tabuleiro, aviões, todos associados aos atributos masculinos, querendo demonstrar como são fortes, poderosos e aventureiros.
O problema central e que sempre converso com minhas filhas e tenho certeza que elas já sabem disso é: meninas podem brincar com tudo isso que é oferecido ao universo das meninas, está tudo bem, mas não precisam brincar só com isso. Elas precisam também saber que podem ser heroínas, aventureiras, fortes, corajosas, poderosas.
Já passei por algumas situações com minhas filhas. Lara, ainda bem pequena, mas com uma personalidade bem forte, entrou num carrinho de fórmula 1 num desses espaços kids de shopping, estava toda feliz brincando, quando um menino tentou tirá-la lá de dentro. Ele dizia que não entendia por que ela estava ali, se aquilo era “brinquedo de menino”.
Nesse momento eu confesso que fiquei aborrecida e quis aplicar um sermão no garoto. Porém, me controlei, fui uma adulta consciente e com calma expliquei que não existe brinquedo de menina e de menino e que ele poderia brincar assim que ela terminasse o passeio.
Reflexo do patriarcado na escola das minhas filhas
Na escola, Lara também já me relatou algumas vezes que os meninos dominam a quadra e elas não conseguem jogar. Minha filha mais velha, por sua vez, agora na pré-adolescência, me lembrou de uma situação clássica, que inclusive pode gerar motivos para muitas meninas nem voltarem para a escola e, em casos mais graves, entrarem em depressão profunda.
Num vídeo que achei no seu celular, uma menina da escola beijava o namoradinho, numa festinha em que vários pré-adolescentes estavam. Até aí tudo bem. Porém, entendam a gravidade: a garota só estava dando um beijo sentada num sofá e foi filmada por um dos meninos que ali estavam. Sentei com ela, perguntei por que aquele vídeo estava com ela. Alicia me disse que a amiga tinha pedido para ela tentar pegar o vídeo.
Nesse momento expliquei duas coisas. A primeira delas foi para que parem de se filmar, isso é desrespeitoso, perigoso e invasivo. Não tem nenhum problema namorar, mas tente não expor ninguém, nunca. Essa geração, talvez ainda não saiba como usar um celular e os danos que uma rede social utilizada de maneira equivocada pode gerar. E a segunda é que se o vídeo viraliza na escola ou cai nas mãos de um pai ou mãe conservadores, a amiga seria prejudicada e o menino visto como o pegador da escola.
Ensinamento que reproduz desigualdades sociais
Retomo aqui o tema dos brinquedos para lembrar que muitos pais, inclusive alguns do meu círculo social, não permitem que seus filhos brinquem com o que não consideram adequados ao gênero da criança. E muitas vezes a proibição acontece de forma bruta.
Acham que se os meninos brincarem com bonecas podem virar gays e meninas se jogam bola ou se vestem mais despojadas serão lésbicas e ensinam isso para eles. Nada disso define a orientação sexual de uma criança.
E, no cotidiano, as crianças vão sendo contaminadas pela hierarquia entre homem e mulher, e claro, sempre com o masculino exercendo a dominação sobre o feminino. Nessa perspectiva, desde a infância, meninas e meninos recebem uma educação sexista. E aqui não falamos apenas como aquela que diferencia homens e mulheres, e sim que potencializa e transforma diferenças em desigualdades sociais naturalizadas. Muitas vezes as crianças vão reproduzir em casa, na escola, na casa dos avós e dos amiguinhos esses ensinamentos.
E isso fica muito claro quando conseguimos furar a bolha sexista para além daqueles famosos chás de revelação, em que o sexo do bebê é definido por cores: se é menina é rosa e se é menino é azul, que só reforçam essa narrativa.
Livros didáticos reproduzem essa educação que reforça o patriarcado
Cansei de ver nos livros didáticos das minhas filhas imagens de meninas brincando com sua casinha e cuidando da sua boneca-bebê. Os meninos, por sua vez, aparecem com carrinhos, bolas e bonecos que reforçam sua liberdade, autonomia, força e independência. Ou seja, não fazendo o mesmo que as meninas.
Sei que hoje em dia muita coisa já melhorou nesse sentido. Eu, por exemplo, jamais escolheria uma escola que reforçasse esse padrão sexista. Entretanto, sei que muitas escolas e famílias ainda estão inseridas nessas escolhas ditadas pelo patriarcado.
O papel da religião nesse panorama
Lembrando que as religiões, em geral, também têm um papel decisivo na manutenção e propagação da ideia da mulher como “sexo frágil” e “ser inferior”, ajudando a mantê-la subjugada e oprimida. Isso eu enxerguei também após o nascimento das minhas filhas.
Agora, deixo a cargo delas, com informação e discernimento, escolherem se querem ou não seguir uma religião. Se faz sentido aquilo para elas, se lhes conforta, traz paz e liberdade.
Desde o nascimento delas, todos os dias e a cada dia é uma luta diária e incansável para lhes explicar – e elas estão entendendo – que nossa sociedade é patriarcal e precisamos desconstruí-la. Arrebentar correntes, quebrar padrões, crenças que nos fazem crescer inseguras, dependentes e oprimidas. Não, não será esse caminho que ensinarei as minhas filhas.
Meninas deveriam jogar mais bola e meninos ensinados a lavarem mais louças e ninarem mais bonecas bebês, pois, como já disse, não é a bola ou a louça que definirá a orientação sexual de uma pessoa.
E por trás disso tudo ainda vi que vem uma carga enorme com um código de linguagem do mundo heterossexual-capitalista-patriarcal separando meninos e meninas, ditando regras e, como disse também, de maneira desigual.
O aprendizado de ser mãe de meninas em um mundo onde o patriarcado é enraizado
Então isso tudo foi o que ser mãe de meninas me ensinou sobre a sociedade que vivemos. E sigo ainda aprendendo. Creio que aquele medo que mencionei no início do texto tenha se transformado em força e coragem para enfrentar esse sistema e guiá-las nessa vida adulta que lhes aguarda.
Os relacionamentos virão, tudo isso que mencionei reflete nas suas escolhas amorosas e nos seus círculos sociais. Essa soma de coisas faz com que elas consigam identificar namoros abusivos, tóxicos, violências muitas vezes veladas e naturalizadas por conta de toda uma criação sexista. Terminei explicando a elas que, para o amor, não existe gênero, apenas se ama.💛