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Entrevista: pediatra tira dúvidas sobre identidade de gênero

Ninhos do Brasil NB
sex, 25/06/2021 - 10:30
Identidade de gênero: imagem de uma criança sentada ao chão junto com a pediatra. Ambos sorriem e brincam com brinquedos que também estão no chão.

“A criança não escolhe a identidade de gênero. Ela já é.” Confira na íntegra a entrevista com a médica pediatra Ana Carolina Novo.

A médica pediatra Ana Carolina Novo já trabalhava há 20 anos no Hospital das Clínicas de São Paulo, quando dois pacientes, irmãos gêmeos, chamaram sua atenção para um assunto com que ela ainda não tinha lidado.

Um era super masculino, só brincava de luta e do alto dos seus três anos queria ser jogador de futebol. O outro era doce, queria só brincar com as bonecas, colocava panos na cabeça para fingir ter cabelos longos e queria uma fantasia de princesa.

“O tema ainda é pouco discutido e ensinado dentro das faculdades de medicina do país”, comenta. Foi a partir desse primeiro contato que ela começou a buscar e estudar mais sobre o tema.

Hoje, a Dra. Ana Carolina integra a equipe do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS), do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, junto a psiquiatras, neurologistas, psicólogos e outros profissionais de saúde.

O ambulatório é um dos poucos centros de atendimento no Brasil a receber e acompanhar crianças e adolescentes com questões de gênero. E a Dra. Ana nos conta nesta entrevista um pouco sobre essa atuação.

Ninhos do Brasil: Qual a média de idade das crianças das famílias que procuram o AMTIGOS?

Ana Carolina Novo: Procuram o AMTIGOS famílias com crianças a partir de 3 anos de idade, com uma idade média de 6,4 anos. Nos pequenos há uma procura maior de famílias com crianças do sexo masculino, porque, na nossa sociedade, um menino com comportamento dito feminino chama mais a atenção que o inverso. Na adolescência a procura aumenta e é igual para meninos e meninas.

NDB: Quando a criança começa a perceber sua identidade de gênero e sua sexualidade?

ACN: Com poucos meses, os bebês já são capazes de diferenciar faces e vozes masculinas e femininas. Em torno de dois anos, as crianças reconhecem as diferenças entre homens e mulheres e já usam os pronomes estabelecidos culturalmente. Elas já reconhecem brinquedos e roupas de meninos e de meninas e fazem escolhas em função disso. Mas nessa idade ainda acham que o gênero muda se mudar de roupa e cabelo.

Entre quatro e seis anos, eles já entendem que o gênero é estável e não vai mudar. E, a partir daí, ocorre uma escolha de roupas e de brincadeiras associados ao próprio gênero ainda maior.

Sexualidade é um conceito amplo que abrange vários aspectos, como sexo (anatômico), identidade de gênero (como a pessoa se sente), papel ou expressão de gênero (manifestação pública de sua identidade) e orientação afetivo-sexual.

Orientação afetivo-sexual é para quem aquele indivíduo vai direcionar seus afetos e desejos. E normalmente os indivíduos só vão reconhecer qual é sua orientação próximo à puberdade.

Mas ainda há muita confusão entre esses conceitos e inicialmente os pais acham que as crianças se tornarão gays ou lésbicas antes de entenderem que a questão é de identidade.


NDB: Como os pais podem ajudar (ou não atrapalhar) nessa descoberta?

ACN: O mais importante é que os pais aceitem e respeitem a criança. As crianças que chegam ao AMTIGOS são privilegiadas nesse sentido, já que foram os pais que as trouxeram. E eles chegam querendo entender o que está acontecendo e saber qual é a melhor forma de ajudar, apesar de sentirem muita culpa, que é infundada.

Mas, infelizmente, muitas ainda são repreendidas por pais, familiares e escolas. Com frequência, essas acabam se fechando porque entendem que elas são erradas. E entram em grande sofrimento.

Mas também é importante que os pais respeitem os tempos das crianças. Alguns pais quando entendem que a criança tem variabilidade de gênero já querem rapidamente trocar nome, roupas, brinquedos, e nem sempre a criança já está pronta para isso.

Como em muitos aspectos de quando se fala em como criar filhos, é fundamental que os pais realmente entendam o que a criança quer dizer, muitas vezes ainda sem usar palavras, e que respeitem que é um indivíduo com certezas e necessidades próprias.


NDB: Como vocês ajudam a trabalhar eventuais frustrações desses pais?

ACN: As famílias, especialmente pais e mães, chegam ao AMTIGOS em grande sofrimento. Sentem-se culpados e responsáveis pelo que está acontecendo. São cobrados socialmente e não sabem como devem agir. E têm muito medo do sofrimento que a criança possa passar.

Eles já são orientados desde o momento do primeiro contato com os profissionais. Os encontros de grupos de família são fundamentais para o cuidado dessas crianças e das famílias. São realizados mensalmente e são momentos muito significativos de troca de experiências entre os pais. Além de permitirem que os pais aprendam com a experiência dos outros e se identifiquem com famílias que passam pelo mesmo que eles, eles compreendem que não estão sozinhos e entendem como lidar melhor com as crianças.

NDB: A criação "sem gênero", com nomes e roupas neutras, é possível? Isso ajuda ou atrapalha no processo de cada criança?

ACN: As crianças já desde muito pequenas podem se entender como cis (cisgênero é quem se identifica com o gênero designado ao nascer) ou transgêneras (identidade de gênero de quem não se identifica com o sexo biológico). A criança não vai escolher sua identidade de gênero quando for maior. Ela já é. Usar roupas e nomes neutros não vai mudar isso.

O que realmente é importante é os pais respeitarem as crianças. Muitas famílias, no intuito de não instituir padrões de comportamento, acabam exagerando no sentido inverso. Uma menina, seja cis ou trans, pode querer usar camiseta e bermuda porque é mais confortável ou vestido rosa de lacinho. E isso deve ser respeitado também. Forçar um menino cis a brincar de boneca mesmo que ele não queira, para ter a experiência (o que já vi mais de uma vez) é um desrespeito com essa criança também.

NDB: A bandeira do movimento rosa e azul não acaba reforçando os estereótipos de gênero?

ACN: Na bandeira trans, o rosa e o azul representam homens e mulheres, tanto cis quanto trans. E a faixa branca engloba todos os que estão entre esses pólos: os intersexos (quem tem órgãos dos dois sexos), os que estão transicionando, os gêneros fluidos (quando a identidade de gênero é variável ao longo tempo) etc. Quando vista dessa forma, o conceito da bandeira é bem interessante, lembrando que ela foi criada há mais de 20 anos. Contudo, no nosso país, atualmente, símbolos com azul e rosa são bem complicados e com uso estereotipado.

NDB: Como diferenciar só uma questão de gostos (por determinados tipos de brinquedos, roupas ou cores) da transgeneridade?

ACN: Gostar de roupas, brinquedos e cores que normalmente são atribuídos a outro gênero nos diz sobre a expressão ou papel de gênero daquela criança. É a diferença entre gostar de boneca e ser menina. Um menino cis pode gostar de boneca e isso não faz dele uma menina.

Já a identidade de gênero é quem aquela criança é. E quem nos vai dizer isso é a própria criança. Algumas já chegam na triagem com certeza de quem são, mesmo os pequenos de três anos. Outros ainda não estão tão convictos e, para estes, é fundamental todo acompanhamento que é feito no AMTIGOS. Para que eles se conheçam melhor e possam ter certeza de quem são.

NDB: Como é o processo até a decisão de transição social? 

ACN: A decisão de se e quando vai ser feita a transição social deve ser feita pela criança, assim como o tempo que vai demorar. Muitas vezes é lenta, primeiro deixar crescer o cabelo, começar a usar outras roupas em casa e aos poucos ir mudando tudo em todos os lugares. Outras vezes é um processo mais rápido e, em pouco tempo, já se faz a transição completa. Mas isso tem que vir da criança. O que se procura fazer é o fortalecimento da criança para que ela possa expressar o que quer, e suporte e orientação para os pais de forma que eles possam respeitar e apoiar a criança na transição.

NDB: E depois, na adolescência, como se decide pelo tratamento hormonal ou não?

ACN: Quando começam as primeiras mudanças corporais da adolescência, geralmente se inicia um grande sofrimento nesses indivíduos. É quando começa a se materializar um corpo diferente da identidade de gênero com o qual o indivíduo se identifica. E é terrível para alguns adolescentes ser um homem mas ter mamas e menstruar. Ou ser uma mulher de barba e voz grossa.

Por isso é possível, logo no início da puberdade, fazer um bloqueio hormonal. É um processo que impede o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, ou seja, não vai ter barba, voz grossa, desenvolvimento de seios e menstruação. O indivíduo vai continuar com um corpo com características infantis.

É bastante seguro e totalmente reversível, e é só interromper a medicação e o desenvolvimento puberal continua normalmente.

O bloqueio é sugerido pela equipe do AMTIGOS para os pacientes que consideramos que vão se beneficiar dele, sempre considerando a vontade do adolescente. Mas a decisão final de se será feito ou não é da família.

Esse bloqueio deve ser feito de forma cuidadosa, dentro de um projeto de pesquisa e por uma equipe multidisciplinar. No Brasil são só três centros que estão autorizados a fazer, sendo o AMTIGOS um deles.

Já a hormonioterapia cruzada, com hormônios femininos ou masculinos, vai levar a mudanças corporais que não são reversíveis. No Brasil ela só pode ser feita em indivíduos com mais de 16 anos de idade.

Mas para iniciar não basta a idade. Os pacientes só são encaminhados para iniciar o tratamento hormonal depois de avaliação e acompanhamento psicológico e psiquiátrico, quando se mostram maduros para fazer essa escolha e competentes para enfrentar as mudanças corporais e sociais que acontecerão.

NDB: É correto falar em crianças LGBTQIA+ ‒ considerando que algumas dessas letras são sobre sexualidade e não sobre identidade?

ACN: Nas letras de LGBTQIA+, várias se referem à orientação sexual, mas o “T” inclui toda a população trans e o “I” os intersexo. E nestes dois grupos estão crianças também. Portanto elas podem fazer parte da população LGBTQIA+ sim.

NDB: Como falar sobre diversidade de gênero com as crianças ‒ sejam cis ou trans?

ACN: Os pais muitas vezes têm dificuldade de abordar esses temas seja pela falta de conhecimento seja por todos os preconceitos que existem em nossa sociedade.

O importante é falar sempre de forma tranquila, sem querer explicar tudo, mas respondendo à dúvida da criança e sempre pensando na forma e conteúdo adequado à idade.

As crianças trans sempre existiram, mas nunca apareciam. Agora elas aparecem cada vez mais na mídia, e isso dá uma maior chance aos pais das crianças cis de falar sobre esse assunto. E, se fizerem isso de forma clara e sem preconceitos, poderemos formar uma geração bem melhor.


NDB: Como é seu trabalho como pediatra no AMTIGOS? Teve algum caso que te marcou mais?

ACN: Faço o seguimento pediátrico das crianças, acompanhando longitudinalmente, junto a toda a equipe, desde a triagem na entrada do ambulatório.

O seguimento pediátrico dessas crianças é fundamental, mas também é muito importante o papel do pediatra antes disso. O pediatra normalmente é o primeiro profissional da área de saúde a quem os pais recorrem quando percebem que algo não está indo como eles esperavam. E a orientação adequada desde o começo pode fazer toda a diferença para a criança e a família.

Você perguntou sobre um caso em especial. Não tem um, tem muitos e muitos. Cada vez que uma criança chega na triagem e se vê o sofrimento dela por não poder ser quem ela de fato é, não há como não ficar triste com e por ela. E, depois de algum tempo, muitas vezes depois da transição social, mas principalmente com a maior aceitação da família, ver essa mesma criança realmente feliz, como toda criança deveria ser, me faz acreditar que nosso trabalho tem realmente sentido.

Leia também: “Me sinto mãe de duas”: o relato de uma mãe de criança trans

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